4 de dezembro de 2010

BESTIÁRIO ALAGOANO Iremar Marinho: Meus poemas

BESTIÁRIO ALAGOANO Iremar Marinho: Meus poemas: "Réquiem para alma baldia Iremar Marinho Divina Pastora guarda o corpo crivado d’alma baldada surpreendida dentro do beco baldio. Di..."

3 de dezembro de 2010

Novo poema de Cicero Melo

CARMINA

Cicero Melo

O verão, Augusto, é dos nobres
E deleitosos veados.

Partimos, mas sangravam.

14 de novembro de 2010

O mundo impossível dos meninos

Iremar Marinho *

“Ó terra em que nasci e morri,
o seu Mundaú, suas lagoas,
minha mocidade.
” (Jorge de Lima)


Poeta Jorge de Lima,
universal e tão próximo.
Na invenção da infância,
criamos o mesmo mundo
impossível dos meninos.

Nós percorremos a mesma
Cidade da Madalena
(ex-Vila da Imperatriz),
o nosso burgo natal):

Rua da Apertada Hora,
Rua do Jatobazinho;
a Rua da Cachoeira,
a Rua do Virador,

Rua da Matança Velha,
Rua do Boi, do Carvão,
Rego da Guida, Pedreiras,
Rua do Consome Homem.

Sou da Rua do Cangote.
És do Largo da Matriz
(da esquina do Comércio,
olhando a Rua de Cima).

Nós passeamos a esmo
pelos “caminhos que ainda
têm orvalhos e sonâmbulos
bacuraus”, “ninhos suspensos”.

Vagueamos no Cruzeiro
do Século, no Jatobá,
no Sueca, no Bolão,
Tobiba, Terra-Cavada,

lá no Fundo do Surrão,
Brejo do Capim, Muquém,
no Cafuxi, Amolar,
no Caboje, na Jurema,

Várzea Grande, Mão Direita,
Cana Brava, Sapucaia,
no Caípe, no Mocambo,
no Ximenes, no Cajá,

no Riachão, nos Esconsos,
Serra Grande das Canoas,
Serras do Frio, da Laje,
da Barriga (do Quilombo).

Tomamos banho no mesmo
Mundaú, das “lavadeiras
seminuas “, curiosos
de ver aquelas “mocinhas
nuinhas, de pé... com frio...”

Na mesma feira de sábado
(eu me perdi do meu pai),
fostes guia da menina
cega que pedia esmolas.

Na estrada Great Western
(“balduínas sonolentas”),
os meninos de “alma lírica”
aprenderam ver paisagem.

Nossos mundos impossíveis
unem-se pelas lembranças
indeléveis como nódoas
nas almas destes meninos.

Eu te peço por empréstimo
tuas raízes (são nossas)
para deixá-las plantadas
para sempre na União.

Empresta-me teu sublime
Acendedor de Lampiões.
Empresta-me Santa Dica.
Empresta-me Pai João.

Empresta-me Quichimbi.
Empresta-me Janaína.
Tua Mulher Proletária.
Empresta-me Negra Fulô.

Só não tomo por empréstimo
tua grandeza de poeta
universal. Minha dívida
contigo é muito grande.

Dever-te-ei para sempre.


* Iremar Marinho é jornalista e poeta, conterrâneo
do poeta Jorge de Lima, que faleceu no dia 15.11.1953

8 de novembro de 2010

Os Conspiradores *

Carlos Queiroz Telles

Na oposição, eles conspiravam.
No governo, eles conspiravam.
No anonimato, eles conspiravam.
Através das rádios, eles conspiravam.
Através dos jornais, eles eles conspiravam.
Através de poemas, eles eles conspiravam.
Nos sindicatos, eles conspiravam.
Nas universidades, eles conspiravam.
Nas catedrais, eles conspiravam.
Ah! Como eles conspiravam
De manhã, de tarde e de madrugada
(especialmente de madrugada).
De frente, de perfil e pelas costas
(quase sempre pelas costas).
Em pensamentos, atos e palavras
Ah! Como eles conspiravam
Conspiravam contra Deus e contra os homens,
contra os homens e as mulheres,
as mulheres e as crianças.
Conspiravam contra a Família!
Contra tudo conspiravam:
contra a ordem constituída
e os preceitos da lei,
contra o regime vigente
e as liberdades sagradas
de ir e vir, de trabalhar, de progredir...
Só vendo como eles conspiravam!
Assim é que nem se aperceberam
dos que contra eles conspiravam.
Dos justos e honestos conspiradores
que conspiravam contra a conspiração
e agora estão no poder.Conspirando.
Contra quem?

* Do livro “Poemas e Recados (1964) em “Relatório de Viagem – 25 Anos de Poesia” (1983) – Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo: Livraria Martins Editora

13 de outubro de 2010

Funeral coletivo na guerra espanhola

Iremar Marinho

Cadáveres de poetas
não servem para heroísmo.
Enterrem logo seus corpos.
Que suas algaravias
não rendam parcos discursos.

Cadáveres de poetas!
Sumam com eles das lápides!
Nem decompondo eles cessam
de comandar as trincheiras
na guerra contra os fascistas.

Cadáveres de poetas
ocupam largos espaços
das terras que se definham.
São feitos para o porvir
(seus ecos roucos retumbam).

Sua atemporal estética
são liames encarnados.
Descarnem logo seus corpos
para que não regorgeiem.
Que não vejam o Paraíso.

não haverá paraíso
nem amores desfolhados


Poetas vivos empestam
o ar da Espanha com versos,
corrompem o ar com silepses,
anástrofes, desestrofes,
com redondilhas sinistras.

Candentes hordas de arqueiros
(traças infra-racionais),
com licenças e silêncios
(com licenciosidades)
esperam coser o mundo.

Seus fantasmas insurgentes,
com armadilhas de rimas
(seus ritmares possessos),
são perigosos, conspiram
contra o ódio dos tiranos.

Seus estribilhos retornam,
suas canções todos solam,
seus ditirambos deliram,
por Baco se embriagam,
por musas se desvanecem.

São fortes contra o Tirano
(contra os cães no pedestal).
Só não resistem aos fuzis
dos criminosos fascistas
(a estese de facínoras).

Aterrem logo estes versos!
Poetas não deixem rastros!
Poemas não subsistam
sob a estese dos fuzis
do Tirano-General!

Não dobrem pelos defuntos.
Apressem seu desencanto,
na terra que vai sorvê-los.
Que jazam definitivos
no calcanhar dos tiranos.

Não esperem Federico
Garcia y bandarilleros,
que eles não voltarão.
Luminares de poetas,
seus rastros são luminosos.

Neste momento dramático
do mundo, o artista deve
chorar e rir com o seu povo.

4 de outubro de 2010

Concerto para flauta-vértebra

Iremar Marinho

Em vez de poeta, sou
o homem do megafone.
Com a palavra no trombone,
anuncio, à luz do dia,
toda tessitura lírica,
todo poema do mundo
para ruir num instante.

Se eu me chamasse Raimundo,
se eu conhecesse Drummond,
se eu visse Pedro Nava,
ruiria num segundo
todo edifício de ossos,
toda escultura-palavra.

Se fosse eu Mayakóvski,
seguraria o gatilho
da palavra invertebrada
da revolução vencida
por um tiro atrás da porta.

Todo poema do mundo,
toda construção-palavra
ruindo por um instante,
no lampejo do estampido,
num sopro da flauta-vértebra.

(A mais-valia da bala,
o mundo em desabalada,
uma balada de outubro,
um tiro no dia rubro
ruiu a trama delírica
da revolução-malogro).

Eu não me chamo Raimundo,
nem Drummond nem Pedro Nava,
só choro às margens do Neva
junto aos mortos de Akhmátova.

17 de setembro de 2010

O rei menos o reino

Augusto de Campos

7

Povo meu ó meu polvo
Nas cabeças escuras e nos braços amargos.
Onde os teus olhos, onde
Em tanto visgo e areia?

Estremeces os braços, vens de longes águas.
Onde os teus olhos, onde?
Escorreram no visgo a clara substância
Ou a areia os enxuga até as tristes raízes?

Moves a negra massa e negra
Guiam-na os olhos cegos como bocas.
Moves-te em derredor e enquanto dormes
Deixas um rastro sempre o mesmo, negro.

Serão teus estes crânios escuros que parecem
Vivos embora escuros crânios,
Essas bocas sem lábios que ainda vomitam sangue
E devoram devoram outros crânios escuros
Pelas nucas inertes?

Ó polvo meu extenuado povo
Monstro de carne e sono que se move
Como eu caminho ao meu redor sombrio.
Que mais queres de mim além de mim?

Arrancaste-me a língua e a hera cobre estas palavras
Pedras
Que se rompem de mim com o sangue de meus vasos
E eu mordo com meus dentes em derradeira oferta:

Quando começo: - Mar... – os teus ouvidos apodrecem

(Não se comove a tua massa, move apenas
Aquelas negras, negras vozes,

Falam em pão em prata e eu ouço PEDRA).

(Viva Vaia – Poesia 1949 – 1979 –
Projeto Gráfico Julio Plaza e Augusto de Campos -
Editora Brasiliense - 1986)

16 de setembro de 2010

Balada dos mortos dos campos de concentração

Vinicius de Moraes

Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Ocos, flácidos cadáveres
Como espantalhos, largados
Na sementeira espectral
Dos ermos campos estéreis
De Buchenwald e Dachau.
Cadáveres necrosados
Amontoados no chão
Esquálidos enlaçados
Em beijos estupefatos
Como ascetas siderados
Em presença da visão.
Cadáveres putrefatos
Os magros braços em cruz
Em vossas faces hediondas
Há sorrisos de giocondas
E em vossos corpos, a luz
Que da treva cria a aurora.
Cadáveres fluorescentes
Desenraizados do pó
Que emoção não dá-me o ver-vos
Em vosso êxtase sem nervos
Em vossa prece tão-só
Grandes, góticos cadáveres!
Ah, doces mortos atônitos
Quebrados a torniquete
Vossas louras manicuras
Arrancaram-vos as unhas
No requinte de tortura
Da última toalete...
A vós vos tiraram a casa
A vós vos tiraram o nome
Fostes marcados a brasa
Depois vos mataram de fome!
Vossas peles afrouxadas
Sobre os esqueletos dão-me
A impressão que éreis tambores –
Os instrumentos do Monstro –
Desfibrados a pancada:
Ó mortos de percussão!
Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Vós sois o húmus da terra
De onde a árvore do castigo
Dará madeira ao patíbulo
E de onde os frutos da paz
Tombarão no chão da guerra!

15 de setembro de 2010

Poema de névoas

Iremar Marinho

Ao meu pai Manoel Marinho

- Que divindade reúne
Miasmas desintegrados
E bóreas inomeados
Para formar nebulosas?

- Um deus desmemoriado,
Qual demiurgo deforma
O tempo para em seguida
Refazê-lo como névoa?

- Não é o cosmo tecido
Como teia pela aranha,
Mas esculpido ao fogo
Soprado por mil demônios.

Ó homem marcado, dai
Lugar a quem, sem sinal,
Passa incólume sob o crivo
Dos detentores da morte.

Atentai ao que está mudo
(Não-falado-aquém-do-som),
Ao quase que nunca é,
Ao rumor de ventos dantes.

Atentai à flor da pedra,
À prostração do vazio,
Ao raio feito delírio,
Aos lírios ensanguentados.

12 de setembro de 2010

Eu à poesia

Vladímir Maiakóvski

Eu à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
eu ainda falo versos e não fatos.
Porém
se eu falo
“A”
este “a”
é uma trombeta-alarma para a Humanidade.
Se eu falo
“B”
é uma nova bomba na batalha do homem.

1922
(Poemas - Vladímir Maiakóvski. Tradução Augusto de
Campos. Tempo Brasileiro, 1967, p. 79)

Crença

Iremar Marinho

Afro-latino-ameríndio,
Creio em Tupã-Xangô,
Na vida passageira,
No homem provisório.

11 de fevereiro de 2010

O Nascimento do Rio

Homenagem poética aos que lutam
contra a Transposição do Rio São Francisco


Autor: Marinho do Nordeste (Idemar Marinho)
Cantor e compositor renascentista,
Membro titular da Academia Brasileira de Literatura de Cordel


Ao Frei Luiz Cappio
Ao Frei Gilvander Moreira
Guardiãos do Rio São Francisco
Ao Professoor Ivan Cavalcanti Proença, crítico maior
e notável defensor da cultura popular

Trechos do Livro: "A Saga do Rio São Francisco"


Quando eu vim à terra houve um ofertório
O fogueteiro escolhido foi Fiel
Formou-se no firmamento um oratório
À direita assistia o anjo Gabriel
E Meu Padrinho à sua esquerda em oração
Sentada ao centro se encontrava Maria
Alcandorado vinha o Cristo que dizia:
Os teus rugidos se ouvirão no sertão!

Ouvi dos mártires a mais bela moção
Cívica ao libertas que também serás!
Surgiu escrita no céu esta oração
Que guardei: Se fores humilde vencerás!
Ainda que reine o poder temporário
E te reduzam a um punhado de espumas
Convém a mim que nunca jamais te consumas
Aumentarei lá na foz o teu estuário...

Nos oceanos ainda haverá corsários
E caso voltes para o ciclo completar
O que é justo somente aos refratários
Serás um rio mas com extensão de mar
Aí ninguém te ousará cortar o fio
Com áreas privativas margens erodidas
Então retornarás em novas investidas
Cumprindo teu destino de um grande rio

Fonte indomável dos oceanos profundos
Razão de ser dos mais singelos ribeirinhos
Torrente dos frios invernos mais fecundos
Como também o poço dos verões mesquinhos
Que ignoram os rios da eternidade
Abrandarei o grito dessas legiões
De criaturas em ocultas convulsões
Cuida, Francisco! Avia! que já é tarde!

Neste momento o mundo deu um estalo
O tempo parou numa dimensão de luz
O eixo do sol teve um grande abalo
O pagador de promessa largou a cruz
Neblinas de uma coloração celeste
Envolveram retirantes e lavradores
As caatingas se impregnaram de flores
Era eu que me aproximava do Nordeste

O SÃO FRANCISCO DEIXA
PARA TRÁS A SUA NASCENTE


Quando deixei para trás a minha nascente
Sonhei um porvir risonho bem por missão:
A terra fecundava toda a semente
Meus afluentes se esparramavam no chão
Cada fenda inóspita reflorescia
Os vilarejos em festa comemoravam
O tempo que os beatos vaticinavam
Dizendo que o mar sertão se tornaria

Desde que saí do Samburá meu desejo
Nunca mudou de cara foi sempre um só
Tão largo quanto a extensão e o cortejo
Que encontrei disperso pelo arredor
Em lamentável condição de extermínio
Por motivo da fraqueza e da tonteira
Que é o começo da fome roedeira
A tornar turvo também meu raciocínio

Fiz o recuo contra minha lealdade
Pois à medida que sacudia os despejos
Nas costas verdes de Alagoas à tarde
Ouvi sussurros pesarosos murmurejos
Que pediam subisse ao Oiapoque
E barrufasse dos confins do Ceará
Até Bahia nos redutos do croá
À custa de maldição tocaia remoque

Pensaram em religar-me a meu irmão
Mais velho cujas ondas são insuperáveis
Irrigaríamos toda esta nação
Mas viram ouro reluzir nos insondáveis
Caminhos do sertão e por causa da vil
Corrida fui traído o trato desmanchado
Parece que estava tudo combinado
E a fome se alastrou pelo Brasil

Eu quis passar pelo raso da Catarina
Para ali fazer crescerem ao ananás
Mas uma voz veio perguntou repentina:
Não vais à terra onde cantam os sabiás?
Lá os pastos são verdes muito mais floridos
Riachos regam canaviais bons de corte
Quem muito tem recebe o dobro como dote
A lei garante o bolso dos protegidos

Os rasos sempre me chamaram a atenção!
Pra eles eu nasci por eles fui gerado
Onde tivesse um raso seco em cascão
Cedo pra lá eu resvalava animado
Até que me senti rio fragmentário
Obrigado a ser apenas um remanso
Hoje tudo que eu quero é só descanso
Quem sabe depois retomo o itinerário

O ALFERES E O RIO

Tiradentes quando me viu contrariado
Sem libertar o Nordeste então saiu
Pelos atalhos perigosos destinado
A morrer pela liberdade do Brasil
Como herói da inconfidência mineira
Enquanto eu era cassado no sertão
O alferes era arrastado pelo chão
Esquartejado pela elite brasileira

A mesma origem tivemos desde a infância
Eu nasci no brejo ele na cachoeira
Eu retirante e ele na relutância
Tirava dentes de segunda à sexta-feira
Trazíamos ambos duas missões radiosas
Eu tornaria o sertão suficiente
Ele faria o Brasil independente
Contra nós dois suscitaram forças trevosas!

Ambos fomos por natureza jardineiros
Joaquim José da Silva Xavier regou
A planta que dá liberdade aos brasileiros
Eu sou um brejo mineiro que aguou
A esperança de quem serve e trabalha
A dor que sinto em mim ele também sente
Somos caroços de uma mesma semente
Gêmeos vitelinos na furria e na muralha

Dele o que sobrou depois em Vila Rica
Se transformou em relíquia memorial
De mim o que restou agora se estica
Na reta de origem um cano de cristal
Mas adorar o faraônico é absurdo
O importante é conservar o amor
Este foi sempre o maior libertador
Porque somente o amor é que é tudo

Ele sabia que indo contra o regime
Despertaria intriga e agitação
Eu já previa que minha missão sublime
Também seria motivo de divisão
Por isso é que resisto às repicagens
Ao empeço à má vontade e covardia
Tendo por certo que vem chegando meu dia
Porque se fecham depressa as minhas margens.

MUDARAM O DESTINO DO RIO

Não me deixaram seguir o plano-piloto
Cujo perfil era capaz de fecundar
Os chapadões onde de fome se cai morto
E se enterra em cova rasa no lugar
Não por preguiça seu moço mas por faltar
Força no corpo carente de vitamina
É a dura realidade nordestina
Que tantos teimam ainda em duvidar

Cada vez que solícito tentei cumprir
A rota traçada pelo crivo divino
Encontrei o percurso a interferir
Cavaleiros do apocalipse nordestino
Que me coagiam a beijar solos costeiros
Onde eternas fluíam potentes veias
E de janeiro a dezembro eram cheias
Que renutriam latifúndios usineiros

Dos que no planalto central foram gerados
Sou de minada a única que no calor
Pendeu para as caatingas condenadas
Onde o sol aparece madrugador
Porém nem bem saía dos lençóis de Minas
Farejaram meu presunçoso paradeiro
Recebi ordem de prisão em Juazeiro
Sob a mira de coronéis carabinas

O RIO DESCONFIA

Querem me reduzir a poço e riacho
Como se eu fosse algum rio menor
Que coubesse numa bacia ou mesmo tacho
Amarrado numa forquilha e dado nó
Para uso restrito e familiar
De importante seleta piscicultura
Isso no fundo corrói minha estrutura
Eu não queria ficar preso a marajá...

Os abastardos sempre têm a seu dispor
Águas em demasia abusam do chuveiro
São apáticos não sabem o que é calor
Sempre que podem trocam Deus pelo dinheiro
Acham que os rios são depósitos de dejectos
Desde que sejam profundos pois os menores
Eles aterram confiscam seus arredores
Sob promessa de caridosos projetos

A voz divina adverte a São Francisco
Antes da histórica chegada em Petrolina:
Meu filho! Adiante tem um obelisco
Que vai te fustigar ata à guilhotina!
É de bom alvitre ires por Caicó
Sempre pela zona seca famigerada
Se te surpreenderem na pavimentada
Vão querer te algemar e te dar um nó!

Neste momento meu pensamento vagueia
Por um mundo de sensações impressionantes
Ouço o canto mavioso da sereia
Que me chama para Maceió nos mirantes
Reajo a esse convite sedutor
Prefiro o beijo e o calor de Teresina
Porém recuso sobrepujar minha sina
Confuso não quero ir para onde vou

Papagaios falantes em presságios breves
Dizem-me que até a dura aroeira
Não mais prestará sua sombra aos almocreves
Porque daqui em diante toda madeira
Frondosa só dará onde meu braço alcance
Quem já se apossa da linha da ribeira
Recebe uma proposta alvissareira:
Eu agracio só a boa vizinhança!

O otimismo das araras me comove
Quando vaticina que ao menos adubo
Para grandes árvores serei onde não chove
Pois se para a parte seca pego subo
Ouço um Basta! vindo dos assentamentos
Não vou além de uns canteiros de legumes
Alguém regula o controle dos volumes
Obediente à lei dos encanamentos

Esta sombra sobra da conta em minha foz
Então se resta sem proveito não é justo
Que para lá me atraiam muito veloz
Aqui vejo tanto horror que me assusto
Há quem comece já a me esquartejar
Chamem meu Padrim Ciço para a extrema unção!
Querem encerrar minhas águas num porão
Dizendo que assim sertão vai virar mar...

Ao me aproximar da serra da divisa
Avisto pecuaristas alegres da China
Que sem tocar o pó da terra que precisa
Pelo menos duma quarta de chuva fina
Desconhecem verões arbustos e espinhos
Que pelos lados sobrevivem há milênios
Na privação carentes de oxigênios
Amarelecidos ao longo dos caminhos

No tempo em que Pernambuco mais devia
A seus vizinhos e pagava no lacaio
Na era da chibata rude da heresia
Deu à Bahia a serra do papagaio
A longos dias se for a pé de Pilão
Arcado, Campo Alegre e São Raimundo
Nonato terras que continuam no fundo
Dos cafundós mesmo depois da inundação

Porque aqui as águas já buscam somente
O eixo que sustenta o fluxo milenar
Vêm e voltam cada dia ao nascente
E se despejam bem na garganta do mar
Incursas neste dispendioso processo
Indiferentes ao gemido dos cabritos
Crias humanas que se afligem aos gritos
Até o término do trágico decesso

A PERDA DO CABEDAL

Quando Vespúcio no período colonial
Me achou e batizou com nome de santo
Eu percebi que perdia o cabedal
Não sei por júbilo ou por desencanto
Só sei que ali começava o delírio
Veredas minhas já naquelas datas idas
Eram pisoteadas quase carcomidas
Dando início ao meu penoso martírio

Gonçalo do Amarante me avisou
Numa inflexão de pura corrigenda:
“Segue a rota que o Cristo tracejou
Não te desvies dos excluídos nesta senda
Mesmo que sejas condenado à cadeia!”
E ainda no meu ponto chamado médio
Os invasores me fizeram o assédio
Entupiram minhas nascentes com areia

Jerico, diz a bíblia, que vinte e duas
Vezes foi invadida só por ambição
Conquistadores tinham inveja de suas
Nascentes que sobejavam em profusão
A limpeza que tive não foi simpatia
Mas sem cobiça pois no meu espaço dou
Madeira devastada de grande valor
A soja tem do governo a garantia.

Desde que fatigado entrei em Pirapora
Se valeram de minha parte os buritis
Tinham sido intimados naquela hora
Ao sacrifício pelo gáudio dos hostis
Cegos advogados do desmatamento
As zonas para derrubada sendo francas
Nem o olhar sobrenatural das carrancas
Conseguia sustar o assoreamento.

Até que ali eu cheguei a esticar
O passo animado por uns carranqueiros
Que me confortavam dizendo avistar
Meu mais generoso afluente – O Pandeiros
Com quarenta lagos de boa extensão
Cheios de bagre carapeba surubim
Todos correndo a se juntarem a mim
Na empreitada para o alto sertão

Os grandes troncos enraizados restantes
O eucalipto o cedro e a figueira
Que careciam de águas claras abundantes
Todos deixaram de nascer à minha leira
Apenas reservadamente os tenho visto
Junto à entrada de ofuscantes usinas
Ou frondejando empreiteiras clandestinas
Mesmo assim recusado nunca desisto

Porém entre Pirapora e Juazeiro
Decerto por ainda ser meio frangote
Conquanto já me achasse meio ronceiro
Não tinha ainda o padecer de Cravinote
Sob o chicote e os castigos de Firmino
Naquele tempo muitas folias de rei
E rodas de São Gonçalo improvisei
Com mineiros que exaltavam Ouro Fino

A CHEGADA DO RIO EM SOBRADINHO
- ENFRAQUECIMENTO DAS BACIAS


Quando eu corria só em meu redemoninho
Atravessando a vereda tropical
Nunca me viram secar em meio de caminho
Era tão forte aguentava passar mal
Hoje qualquer solzinho me faz recuar
Uma légua para mim é muita distância
Recolho-me à minha insignificância
Estou morrendo me arrastando devagar

Nesta penúria o meu leito se bifurca
Constantemente açoitado empalideço
Pouco à frente se ergue a arapuca
De tanto me castigarem enfim esmoreço
Rios menores correm a me socorrer
Não adianta enxertia enchimento
Meu mal é de morte mal de recolhimento
Metade de mim não serve mais pra beber

Quando me vi assim retido em Sobradinho
Chorei opresso fiquei a conjeturar:
Se chove fácil nesse ponto ribeirinho
Então por que vão minhas águas segregar
Em uma gigantesca concha de marfim
Ou cercado por todos os lados de parede
Que me impede de ir minorar a sede
De quem se aflige e tanto chorar por mim?

Triste fiquei como Oliveira sem Roldão
Repartido em sesmarias para herança
Aquele gênio que eu tivera de sansão
Agora era o gênio de uma criança
Que ao deixar Minas Gerais fui logo preso
Refém de agropecuaristas rurais
Interditado por avisos e currais
Sobrevivendo neste longo menosprezo

Desfalecido percorri quênios fagueiros
Cobertos de um manto fino folharal
Não vingava um pé de fava nos carreiros
Do topo me surgiu chaminé magistral
Entre a fumaça e o bueiro existia
Todo um oceano de substâncias impuras
Essa reserva de coisas densas escuras
Disseram que ali era eu que me pervertia

Minhas bacias com a vinda dos grileiros
Se afastaram por causa de tanto tiro
Cabras da peste perderam seu paradeiro
Tiveram que pela praia fazer retiro
Por lá muitos vivem à beira do cais
Fugindo de policiais e de contendas
Outros ficaram de jagunços em fazendas
A maioria pra casa não voltou mais

No que me enroscaram com essa tapagem
Em diversos lugares aticei o choro
Uns choraram por motivo de ressecagem
Outros gritaram de tanta água no couro
Muitas bacias sedentas ignorei
Não por mim mas porcausa de ambição alheia
Mesmo no calabouço de uma cadeia
Contrariado Casa Nova inundei

Todo rio carece de sombra amiga
De juncos mulungus jasmins e ingazeiras
Precisa de chuva com sol e de cantiga
De passarinho e criança nas ribanceiras
Tagarelando sem orgulho e sem soberba
Em alquimias de profundo ensinamento
Comportas ferros galerias de cimento
Fazem a vida passar sem que se perceba!

Qual Severino fui ficando esgotado
Nossa Senhora! Os torvelinhos fraquinhos!
O marulhar hesitante e espantadiço
Continuamente xingado pelos caminhos
Sem poder empurrar nem um carrim de mão
No sagrado e santo ofício do carrego
Que garantia o sono e o sossego
Das lindas noites de sábado em União

O SÃO FRANCISCO TRAZ CONSIGO
A TRISTEZA DE CRAVINOTE


Assim subi trambecando – aquele graveto
De rio seco. Meu Deus! Perninha fininha...
Quase sem água pobrezinho num aperto
De fazer pena à cacimba de Candinha
Incapaz de avexar o passo e o trote
Sem camisa pelo sertão ao desatino
Eu vi o sol tostar meu braço nordestino
Carregando a tristeza de Cravinote!

Desajeitado estanque me debatendo
Espumava na terra a gagulejar
Quando acordava convulsivo ia dizendo
A quem às margens encontrasse a rezar
Que a mardita era uma piloquicia
Segundo a terminologia do franzino
Enigmático gracioso figurino
Como eu exposto a riso e ironia...

Valha-me Deus desse penoso passamento
A congestão me deixa assim banalizado
Toda vez que ocorre corro me assento
Para não ser ainda mais hostilizado
Como se fosse Cravinote na arrelia
Do ocaso nos logradouros palmarinos
Em sequidão escuto o grito dos meninos
Meu mal só pode ser também pilepicia

Pedras me atiravam no peito cativo
Escarneciam me tratavam sem candura
Desfigurado cabisbaixo eu pensativo
Tinha vergonha de minha pouca espessura
Me perseguiam comparativos fatais
Minha estranha e fraca fisionomia
Dava um esboço para a teratologia
Minhas feições tinham contornos infernais

Logo malquisto por quem me satirizasse
O visual assustado de saracura
Desaforado no canto que descansasse
Juntava gente eu era o diabo em pintura!
Uma feiúra que relatar me esquivo
Triste malogro que ficou catalogado
Na lembrança e pelo leitor comparado
Ao assassino do cão do terceiro livro

Odiado pelo Véio Fuloriano
Eu não podia ao menos me encontrar
Com o Canhotinho – o riachinho profano
Onde as meretrizes iam se banhar
E enxaguar a roupa suja das falenas
A salvação eram as rezas de Mãezinha
E as rogativas de madrinha Mariquinha
No altar de Santa Maria Madalena!

JOACEMA

Em Sobradinho a vista chega mareia
O ar se enche do cheiro de alfazema
E num misto de sertaneja e sereia
À flor das águas submerge Joacema
Da mesma forma que me sinto na amargura
A virgem guerreira também mostra na face
Uma angústia como se assim chorasse
Por causa da minha forçada curvatura

Expulsos os guerreiros filhos de Tupã
Foram sumindo da toca os meus cardumes
Jaci não mais pôde ser vista de manhã
Estranhos introduziram os seus costumes
E Joacema teve que sair daqui
Trocou a pedra pelas ruas do bordel
Conheceu um admirador de Gardel
Mas do romance não nasceu um guarani!

A tez da moça traz agora um certo ruge
Chegado a carmesim meio arroxeado
Em vez de tímida calada eis que surge
Oferecida nos prostíbulos ao lado
Guerreira pobre de marré-marré-desci
Sonha em reconquistar a sua aldeia
Enquanto dorme com seu homem na cadeia
Numa versão trágica de Peri e Ceci

Silencioso e simples qual beija-flor
Também fui cortejado desde a mocidade
E aqui depois que se me motorizou
Tornei-me pabo cheio de formalidade
Agora sou usina de particular!
Não vejo pobre plantando por essas bandas
Já nem mando em mim o rico é quem manda
O seu desejo é somente me usar

Sentada à pedra bonita - seu divã
A jovem índia com seus dotes singulares
Agradecia a presença de Tupã
Que a protegia do branco vindos dos mares
Atrás de ouro porcelanas só enfeites
Aqueles rudes invasores de outrora
Hoje transformam melancias e amoras
Em dividendos mansões e lautos banquetes!

Aqui me revestiram com trajes berrantes
Minha cabeça adornaram com turbinas
Meus braços foram pintados com diamantes
Pra ofuscar as cantorias nordestinas
Que eram belas no sertão de luas cheias
Às margens só vejo luxúria e riqueza
Invasores vestidos de seda francesa
Fincam seus mastros em minhas tristes areias!

Sem atentar pro perigo da engenharia
Adversária da vida causa primeira
Os calvinistas modernos chegaram um dia
E inundaram o rancho e a palmeira
Onde cantava o sabiá bem cedinho
Sabendo que pertenciam à mesma gema
E descendiam dos filhos de Joacema
A índia encantada vista em Sobradinho

Joacema hoje chora por causa justa
Não por motivo de fundura de represa
Volume d’água não é coisa que assusta
Desde que não se menospreze correnteza
Banhar-se em água virgem inda que pouca
Cantar seu ponto nativo puro inocente
Livre viver na aldeia com sua gente
Era seu único e puro sonho de cabocla

Mesmo que hoje permaneça a cantar
Atoleimada pela tecnologia
Talvez seu canto não se faça escutar
Por ser a voz da natureza em agonia
Falando de corrupções e veleidades
Tapando-lhe os olhos e o horizonte
Uma parede que cala a voz da fonte
E uma ponte separando as cidades

Eu culpo o capitalista renomado
Que faz da água e da terra diversão
Mal pagando pobre assalariado
Pra estocar arroz cebola e feijão
Onde já tem demais até de dar com o pé
Sendo servidos à ceia dos milionários
E renegados à mesa dos operários
Mortos de fome na terra de Abaeté

Enfim me obrigaram mesmo abandonar
O verdadeiro sentido de um grande rio
Casebres fui constrangido a flagelar
Fiz até a natureza perder o cio
O poço onde a cabocla se banhava
Foi encoberto com tiborna e baronesa
A coitadinha nada contra a correnteza
Sem tomar pé na pedra onde se sentava!

Joacema preferia o meu roteiro
Desde Minas para os cocais maranhenses
Onde a briga entre o índio e o posseiro
Foi sempre desigual marcada por suspenses
Com extermínios totais sob o comando
Da bronca autoridade policial
Que punha fogo na casa no matagal
Em nome do fazendeiro chefe do bando

Não sei se no atlântico ainda desemboco
Porque antes de lá chegar sou compelido
A romper em Xingó outro maciço bloco
De concreto armado para meu gemido
Sinto no peito a vergonha de Joacema
Que agora já não toma banho distraída
Mas a maior decepção da minha vida
É o peixe não subir para a piracema!

31 de janeiro de 2010

Melhores poemas que eu li

Procura da Poesia

Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários,
os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo,
tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo
ou de dor no escuro são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco
e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas
nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem,
rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite,
adiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões,
vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo,
é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva
e concentrada no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

BRASIL: A LAGOA DOS NEGROS

TAQUI PRA TI
BRASIL: A LAGOA DOS NEGROS

José Ribamar Bessa Freire
17/01/2010 - Diário do Amazonas

Os índios mapuches e os camponeses que vivem às margens de uma lagoa, ao sul do Chile, juram que, de vez em quando, aparecem boiando no espelho d’água cabeças negras, com cabelo pixaim. Dizem que as cabeças vão surgindo, uma depois da outra. Dizem que ficam de bubuia, flutuando por um instante fugaz e, depois, voltam para o fundo da lagoa, conhecida, por isso, como Laguna de los Negros. Algumas histórias que ainda hoje circulam falam em oito cabeças, outras em vinte e até mais.

Já tentaram fotografar as aparições, mas elas se mostram apenas em uma fração de segundo. Só quem pode vê-las é o morador da região, que sabe das coisas. Para os citadinos desinformados, vindos de fora, elas são invisíveis. Aí, como nada vêem, esses analfabetos da oralidade acham que tais “visagens” e “histórias de assombração” não passam de “fantasia de índio”, “superstição de camponês”, “crendice absurda”, “invenção”, “mentira” ou, no melhor dos casos, “puro folclore”, incompatível com a modernidade, a tecnologia, o pensamento científico, a metrópole, a internet.

Foi aí que um historiador, para quem só vale o que está escrito, vasculhou arquivos em busca de pistas que explicassem o fato. Descobriu na documentação antiga que o colonizador espanhol decapitava os índios ou amarrava uma pedra no pescoço deles, atirando-os no fundo daquela lagoa, que ainda guarda o mistério e o encanto do tempo em que foi mais larga e profunda.

O último registro escrito dá conta de um motim ocorrido em janeiro de 1804 no navio negreiro Prueba, quando 72 escravos trazidos da África em jaulas, como bichos, se revoltaram, mataram 18 marinheiros e exigiram que o capitão, chamado Carreño, voltasse pro Senegal. No retorno, um navio norteamericano atacou o barco e trucidou os revoltosos. Oito sobreviventes presos – um deles de nome Mure - foram condenados à morte e atirados no fundo da lagoa, de onde, de tempos em tempos, emergem.

As aparições

O pesquisador uruguaio Nestor Ganduglia, que sabe ler oralidades, considera as aparições como uma estratégia de preservação da memória popular. É assim que as pessoas humildes fazem: não escrevem livros, mas gravam suas experiências, quase sempre amargas e dolorosas, na paisagem, nos costumes, nos rituais, nos cantos, nas vozes que transmitem suas narrativas lendárias, criando redes subterrâneas que mantêm a memória viva em um mundo dominado por versões oficiais – ele diz.

A História oficial - relato escrito dos vencedores - apaga os crimes hediondos e afoga as atrocidades dos poderosos no lago do olvido. Milhares de ossadas permanecem insepultas nas águas da nossa América. Para serem lembradas é que, de vez em quando, sobem á tona na voz do povo, que resiste ao esquecimento e manifesta seu assombro, ao repassá-las oralmente de uma geração a outra, transpondo as barreiras do tempo.

Eis o que eu queria dizer: o Brasil é uma enorme Lagoa dos Negros. Os horrores da escravidão foram esquecidos e os bandeirantes, que assassinaram índios, transformados em heróis. As narrativas das comunidades quilombolas, dos povos de terreiro e das aldeias indígenas continuam fora da sala de aula, do museu, do monumento e da mídia, apesar de uma lei recente obrigar sua inclusão nas escolas.

O atual debate sobre a ditadura militar revela como a memória é apagada. Durante vinte anos, a repressão política seqüestrou, prendeu, espancou, torturou e exilou milhares de pessoas, deixando um saldo de 144 mortos sob tortura e 125 desaparecidos, cujos cadáveres não foram localizados, entre eles o do amazonense Thomaz Meirelles, aqui citado no domingo passado.

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, ex-ministro da Justiça no governo FHC, de forma apressada, declarou ontem que os militares brasileiros desaparecidos sob os escombros no terremoto do Haiti não estão mais vivos. “A expressão desaparecido é técnica. Significa corpo não encontrado” – disse, prometendo localizar os cadáveres. Não quer, porém, igual tratamento aos desaparecidos políticos, que permanecem soterrados nos inacessíveis arquivos dos órgãos de repressão.

As memórias

Na disputa pela memória, o presidente Lula assinou decreto, contendo um montão de resoluções aprovadas na 11ª. Conferência Nacional de Direitos Humanos, entre as quais a criação da Comissão da Verdade, encarregada de esclarecer “as violações de direitos humanos praticadas no contexto da repressão política” durante a ditadura militar.

Lula explicou, anteontem, em entrevista a TV Mirante, no Maranhão, que o decreto manifesta apenas uma intenção: “O governo pode aceitar tudo, pode aceitar 80% ou 30%. Uma parte pode ser transformada em lei, a outra fica no programa”. A proposta pode ou não ser encaminhada como projeto de lei ao Congresso Nacional, onde vai ser analisada, discutida, emendada e votada, podendo ser aprovada ou rejeitada. O que a Comissão da Verdade vai fazer depende disso tudo e dos poderes a ela atribuídos.

Embora a Comissão da Verdade seja apenas uma proposta indicativa, bastante tímida, sem poder legal, mesmo assim os comandantes militares reagiram contra ela como senhores e donos da memória nacional, papel que não lhes cabe constitucionalmente. Não querem sequer que a idéia seja discutida. Foram intransigentes. Exigiram que a expressão “repressão política” fosse apagada no novo decreto. Foram obedecidos. Os arquivos militares continuam fechados. Só nos resta resistir, mantendo os torturados de bubuia no lago de nossa memória.

A tortura é considerada ilegal até mesmo pela legislação arbitrária de qualquer ditadura. Mas os torturadores só foram julgados – como Pinochet no Chile, depois de preso em Londres - quando os países que praticaram esse crime hediondo foram redemocratizados: Chile, Argentina, Uruguai, Portugal, Espanha, Grécia. Os processos judiciais atestaram a existência da democracia e contribuíram para recuperar a memória.

A Argentina acaba de abrir os arquivos da ditadura. O Chile investiu US $20 milhões para construir o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, um edifício de cinco andares, projetado – oh ironia! – por um escritório paulista de arquitetura. Tem um arquivo no subsolo aberto para consulta, milhares de fotos, cartazes, textos e testemunhos em vídeos com crianças em busca de seus pais e avós, além de um espaço – o velatón – onde o acrílico reproduz as velas que eram acesas nos locais de execução.

Revanchismo? Insensatez? Não, apenas compromisso com a História. Cutucar a onça com vara curta? Pode ser se não sabemos o tamanho da nossa vara. Mas ninguém quer torturar os torturadores, apenas que respondam, dentro da lei, pelos atos que cometeram, assegurando-lhes um direito que eles não concederam às suas vítimas: o de ampla defesa. A impunidade deles contribui para que, ainda hoje, a tortura continue praticada em nosso país contra presos comuns, de origem pobre.

Muitas cabeças ainda vão boiar no lago da memória, até que o Brasil, efetivamente, se redemocratize e tenha consciência de que o futuro só se transforma se encararmos o passado. Por isso é que a memória é tão importante.

9 de janeiro de 2010

Jornal dos Bairros circula com notícias de impacto de Maceió e de Alagoas

O semanário Jornal dos Bairros está circulando, em Maceió e nas principais cidades do Estado, desde sábado (9 de janeiro). Iniciativa dos jornalistas Iremar Marinho (ex-jornal Extra) e Fabiano Sarmento com o apoio de um grupo de jornalistas alagoanos, o Jornal dos Bairros publica as notícias de impacto de Maceió e de Alagoas, da forma como os demais jornais não publicam.

A primeira edição do Jornal dos Bairros focaliza os contrastes de “Maceió dos ricos e dos pobres”, mostra a cidade engavetada e aponta soluções para melhorar o fluxo de veículos, como também os impactos positivos e a expansão imobiliária gerados com a chegada do Shopping Pátio Maceió, na parte alta da cidade.

O jornal mostra como se movimentam as cabeças políticas alagoanas no ano político que começa. Iremar Marinho, na coluna Café Central, comenta o mundo político, e Fabiano Sarmento está “de butuca”, nos fatos da economia e da cidade.

O corregedor-geral substituto da Polícia Federal, delegado Joacir Avelino, revela que 50% dos assassinatos, em Alagoas, têm relação com o tráfico de drogas e que crianças de 7 e 8 anos já estão envolvidas com o crime.

O Jornal dos Bairros mostra onde estão os empregos em Alagoas e o avanço do setor de supermercados. EmeNóbrega mostra como fazer uma antena de banda larga caseira com um antena de lata,
e o professor Eduardo Sarmento tira as dúvidas da língua portuguesa.

Na edição estão os avanços da cirurgia plástica no Brasil e o combate à Aids, como também as notícias do rock-pop, com o jornalista e músico Marcelo Cabral, e Roberto Beckér falando de sua música.

Iremar Marinho – 8113-0829

Fabiano Sarmento – 8115-2501