17 de setembro de 2010

O rei menos o reino

Augusto de Campos

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Povo meu ó meu polvo
Nas cabeças escuras e nos braços amargos.
Onde os teus olhos, onde
Em tanto visgo e areia?

Estremeces os braços, vens de longes águas.
Onde os teus olhos, onde?
Escorreram no visgo a clara substância
Ou a areia os enxuga até as tristes raízes?

Moves a negra massa e negra
Guiam-na os olhos cegos como bocas.
Moves-te em derredor e enquanto dormes
Deixas um rastro sempre o mesmo, negro.

Serão teus estes crânios escuros que parecem
Vivos embora escuros crânios,
Essas bocas sem lábios que ainda vomitam sangue
E devoram devoram outros crânios escuros
Pelas nucas inertes?

Ó polvo meu extenuado povo
Monstro de carne e sono que se move
Como eu caminho ao meu redor sombrio.
Que mais queres de mim além de mim?

Arrancaste-me a língua e a hera cobre estas palavras
Pedras
Que se rompem de mim com o sangue de meus vasos
E eu mordo com meus dentes em derradeira oferta:

Quando começo: - Mar... – os teus ouvidos apodrecem

(Não se comove a tua massa, move apenas
Aquelas negras, negras vozes,

Falam em pão em prata e eu ouço PEDRA).

(Viva Vaia – Poesia 1949 – 1979 –
Projeto Gráfico Julio Plaza e Augusto de Campos -
Editora Brasiliense - 1986)

16 de setembro de 2010

Balada dos mortos dos campos de concentração

Vinicius de Moraes

Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Ocos, flácidos cadáveres
Como espantalhos, largados
Na sementeira espectral
Dos ermos campos estéreis
De Buchenwald e Dachau.
Cadáveres necrosados
Amontoados no chão
Esquálidos enlaçados
Em beijos estupefatos
Como ascetas siderados
Em presença da visão.
Cadáveres putrefatos
Os magros braços em cruz
Em vossas faces hediondas
Há sorrisos de giocondas
E em vossos corpos, a luz
Que da treva cria a aurora.
Cadáveres fluorescentes
Desenraizados do pó
Que emoção não dá-me o ver-vos
Em vosso êxtase sem nervos
Em vossa prece tão-só
Grandes, góticos cadáveres!
Ah, doces mortos atônitos
Quebrados a torniquete
Vossas louras manicuras
Arrancaram-vos as unhas
No requinte de tortura
Da última toalete...
A vós vos tiraram a casa
A vós vos tiraram o nome
Fostes marcados a brasa
Depois vos mataram de fome!
Vossas peles afrouxadas
Sobre os esqueletos dão-me
A impressão que éreis tambores –
Os instrumentos do Monstro –
Desfibrados a pancada:
Ó mortos de percussão!
Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Vós sois o húmus da terra
De onde a árvore do castigo
Dará madeira ao patíbulo
E de onde os frutos da paz
Tombarão no chão da guerra!

15 de setembro de 2010

Poema de névoas

Iremar Marinho

Ao meu pai Manoel Marinho

- Que divindade reúne
Miasmas desintegrados
E bóreas inomeados
Para formar nebulosas?

- Um deus desmemoriado,
Qual demiurgo deforma
O tempo para em seguida
Refazê-lo como névoa?

- Não é o cosmo tecido
Como teia pela aranha,
Mas esculpido ao fogo
Soprado por mil demônios.

Ó homem marcado, dai
Lugar a quem, sem sinal,
Passa incólume sob o crivo
Dos detentores da morte.

Atentai ao que está mudo
(Não-falado-aquém-do-som),
Ao quase que nunca é,
Ao rumor de ventos dantes.

Atentai à flor da pedra,
À prostração do vazio,
Ao raio feito delírio,
Aos lírios ensanguentados.

12 de setembro de 2010

Eu à poesia

Vladímir Maiakóvski

Eu à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
eu ainda falo versos e não fatos.
Porém
se eu falo
“A”
este “a”
é uma trombeta-alarma para a Humanidade.
Se eu falo
“B”
é uma nova bomba na batalha do homem.

1922
(Poemas - Vladímir Maiakóvski. Tradução Augusto de
Campos. Tempo Brasileiro, 1967, p. 79)

Crença

Iremar Marinho

Afro-latino-ameríndio,
Creio em Tupã-Xangô,
Na vida passageira,
No homem provisório.